Série: Clássicos - Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive)
⚠️ Atenção Alerta de Spolier: Uma Jornada Entre Sonhos e Realidade no Clássico de David Lynch
David Lynch é um diretor que provoca reações extremas. Enquanto alguns consideram sua obra uma arte enigmática e instigante, outros veem nela um labirinto frustrante e confuso. Seu filme de 2001, Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive no título original), é um exemplo perfeito de sua abordagem narrativa única, que mistura simbolismos oníricos, fragmentos de realidade e um toque de surrealismo que desafia qualquer tentativa de explicação linear. Para muitos, é sua obra-prima. Para outros, é um quebra-cabeça sem solução
Uma Narrativa Não-Linear
O filme começa como uma aparente história de mistério em Hollywood. Após um acidente de carro na Mulholland Drive, uma mulher (interpretada por Laura Harring) perde a memória e se refugia na casa de uma aspirante a atriz, Betty (Naomi Watts). Juntas, elas tentam descobrir a identidade da misteriosa mulher, que adota o nome "Rita" em referência a um cartaz do filme Gilda.
Porém, conforme a história avança, a narrativa se fragmenta. O que parecia ser um mistério simples se transforma em um caleidoscópio de eventos que não seguem uma lógica tradicional. Personagens mudam de identidade, cenas parecem desconexas, e há momentos que desafiam completamente a compreensão imediata.
Realidade vs. Sonho: Decifrando o Enigma
A chave para entender Cidade dos Sonhos está em aceitar que grande parte do filme se passa no campo do inconsciente – mais especificamente, nos sonhos e arrependimentos da protagonista.
O filme pode ser interpretado como dividido em duas partes:
O Sonho (ou Fantasia): Nos primeiros dois terços do filme, vemos a história sob o ponto de vista de uma realidade idealizada. Betty é uma jovem otimista, talentosa e pronta para conquistar Hollywood. Rita, a mulher misteriosa, depende dela para resolver o enigma de sua identidade. Essa parte é repleta de coincidências, emoções intensas e soluções aparentemente fáceis – características típicas de sonhos.
A Realidade (ou Pesadelo): No último terço do filme, as peças se reorganizam. Betty, na verdade, é Diane, uma atriz fracassada que foi rejeitada em Hollywood e consumida pelo ciúme e desespero. Rita é Camilla, uma atriz de sucesso que teve um caso amoroso com Diane antes de rejeitá-la para se casar com outro. A narrativa linear desmorona, simbolizando a confusão emocional e o colapso mental de Diane.
O contraste entre essas partes reflete a tentativa da protagonista de fugir de sua realidade dolorosa, mergulhando em uma fantasia onde tudo é perfeito – mas a verdade sempre a alcança.
Símbolos e Elementos Crípticos
David Lynch não é um cineasta que entrega respostas claras. Ele usa símbolos para explorar temas complexos como identidade, ambição, fracasso e culpa. Aqui estão alguns dos elementos mais discutidos:
A Caixa Azul: Representa o ponto de ruptura entre o sonho e a realidade. Quando aberta, ela revela a verdade oculta e desconstrói a narrativa fantasiosa.
O Cowboy: Uma figura enigmática que aparece como um guia ou lembrete de que algo está errado. Sua presença reforça a ideia de forças externas controlando os destinos dos personagens.
O Clube Silencio: Uma das cenas mais icônicas do filme, onde uma cantora performa uma música emocionalmente carregada, apenas para revelar que está dublando. Essa cena reflete a natureza ilusória do que é apresentado no filme – nada é o que parece.
O Significado do Título
O título original, Mulholland Drive, é mais enigmático do que sua tradução para o português, Cidade dos Sonhos. Enquanto o primeiro remete ao local onde tudo começa, o título em português entrega parte da interpretação do filme: Hollywood como a terra dos sonhos, tanto os realizados quanto os desfeitos. Essa dicotomia é central na obra de Lynch, que examina os dois lados da moeda com um olhar crítico.
Um Clássico que Divide Opiniões
Apesar de sua aclamação pela crítica – incluindo uma presença frequente nas listas de melhores filmes da história –, Cidade dos Sonhos não é para todos. Sua narrativa fragmentada e simbolismo denso podem ser frustrantes para quem espera uma história clara e conclusiva.
No entanto, essa complexidade também é o que torna o filme tão impactante para muitos. Lynch exige que o espectador participe ativamente, interpretando, questionando e debatendo o significado da obra.
O que eu achei?
Um filme que exige explicação pode ser visto como um fracasso narrativo? Essa é uma crítica válida, mas também uma provocação que expõe a intenção artística de David Lynch: ele não quer entregar respostas fáceis. Sua obra é projetada para ser sentida, digerida aos poucos, e muitas vezes debatida – não necessariamente compreendida em sua totalidade de imediato. Ainda assim, a necessidade de pesquisar significados pode ser um pouco desgastante, especialmente para quem busca uma experiência cinematográfica mais acessível.
Se Cidade dos Sonhos é ou não o melhor filme de David Lynch, isso depende do olhar de quem assiste. No entanto, é inegável que a obra encapsula sua visão singular, desafiadora e profundamente pessoal sobre a arte do cinema. Para mim, a experiência foi uma mistura de frustração e fascínio, que culminou em reflexões interessantes sobre a narrativa e os simbolismos. Talvez esse seja justamente o objetivo de um clássico: não apenas entreter, mas provocar.
Na nossa tradição semanal, eu e minha digníssima sorteamos um clássico da lista dos 107 grandes filmes que decidimos assistir juntos. Esta quarta-feira, Cidade dos Sonhos nos tirou da zona de conforto e gerou boas discussões. Agora, fica a expectativa: qual será o próximo clássico sorteado? Que venha mais uma obra marcante para explorar as nuances do cinema, refletir sobre sua essência e, quem sabe, discutir por horas a fio!