“Ma” é a palavra japonesa para o entre: o intervalo vivo entre um gesto e outro, a pausa que dá forma ao tempo e ao espaço. Não é vazio morto; é respiro. Como o silêncio que torna uma nota musical audível, ou o espaço em branco que faz um desenho existir.
No cinema, ma é quando a câmera permanece um pouco mais — e, nesse excedente de tempo, os detalhes começam a falar: a luz filtrada pelas folhas, o chiado distante da cidade, uma respiração.
Miyazaki faz o ma acontecer
Hayao Miyazaki usa o ma como um artesão paciente. Ele confia que o espectador sabe sentir sem que algo “importante” esteja acontecendo o tempo todo.
Em Meu Amigo Totoro, há cenas de espera na chuva, de cochilos na varanda, de vento na plantação. Nada “anda” na trama, mas tudo se aprofunda na nossa percepção do lugar e das personagens.
Em O Serviço de Entregas da Kiki, o amadurecimento surge na rotina: varrer, assar, pedalar. A pausa entre uma entrega e outra é onde Kiki se descobre.
Em A Viagem de Chihiro, momentos de travessia — no trem, sobre a água — são pura contemplação. O mundo respira; a gente respira junto.
Natureza como tempo: Mesmo quando há conflito (Princesa Mononoke), Miyazaki dá espaço para observar musgos, brumas, raízes — como se lembrasse: a vida tem cadências que não cabem na pressa.
Em todos esses casos, o ma não é um enfeite estético. É uma ética da atenção: reconhecer que a realidade tem camadas que só aparecem quando paramos de exigir espetáculo.
Dias Perfeitos um estudo filmado de ma
Wim Wenders transpõe essa ética para o realismo urbano. Acompanhamos Hirayama, trabalhador que limpa banheiros públicos em Tóquio. O filme estrutura-se como um caderno de rituais:
Acordar cedo; dobrar o futon.
Regar as plantas; sentir a umidade nascer das folhas.
Dirigir ouvindo fitas cassete; janelas abertas, cidade passando.
Cuidar de cada banheiro como se fosse um pequeno templo.
Almoçar simples, ler, fotografar o komorebi — a luz peneirada pelas copas.
O que mantém tudo unido é o ma: as pausas entre as ações. Wenders deixa a câmera escutar água correndo, passos, motores, pássaros. Esses intervalos são o lugar onde Hirayama existe sem precisar se explicar. Não há corrida por clímax; há presença.
Vazio que acolhe
No enquadramento, sobra ar: corredores, portas, paredes lisas, céu. Esse “vazio” não é ausência; é disponibilidade. Como um vaso, ele tem valor porque pode conter. Assim, cada encontro — um colega falante, uma sobrinha que aparece, um desconhecido no parque — encontra um protagonista receptivo, capaz de estar com o outro sem ruído.
A rotina se repete com pequenas variações. É na diferença mínima — uma sombra, uma música, uma troca de olhar — que percebemos a impermanência. O filme transforma o dia comum em campo de descobertas: o mundo muda um pouco sempre que a gente olha devagar.
Contemplar o “nada” e sair feliz
“Contemplar o nada” aqui não é niilismo; é afinar os sentidos para o agora. Dias Perfeitos nos treina a notar aquilo que a pressa subtrai:
A dignidade que emerge de fazer bem um trabalho invisível.
A ternura contida em gestos pequenos.
A beleza que aparece quando a luz encontra o espaço entre as folhas.
Essa contemplação alivia. Por quê? Porque desloca nossa felicidade do que é grandioso e raro para o que é disponível: o sol da manhã, uma canção no carro, o sorriso que surge quando ninguém exige que surja. A solidão de Hirayama não é um buraco; é uma clareira. E na clareira, a vida entra — mansa, completa. Saímos do filme com a sensação paradoxal de plenitude serena: nada mudou e, ao mesmo tempo, tudo está melhor posicionado dentro de nós.
Dias Perfeitos é uma obra de arte que devolve tempo ao espectador. E tempo devolvido é convite à alegria simples. Ao final, entendemos o sentido mais bonito do ma: o mundo precisa de espaços entre as coisas para caber — e nós também. Quando aceitamos esses espaços, a solidão deixa de ser falta e vira forma. E nessa forma, discretamente, mora a felicidade.